Nov 8 · 21 min read
Alexandra Vieira de Almeida*
(Edição Brasileira: Espelho D’Alma, 2019 e Edição Portuguesa: Gato Bravo, 2020)
Autora consagrada e premiada, Denise Emmer é poeta, romancista, contista e musicista. Ganhou prêmios da maior representatividade literária, como os da ABL, APCA, Prêmio Internacional da Unesco José Marti, Pen Clube, entre outros. Estreia com maestria no gênero conto em seu livro O cavalo cantor e outros contos, dedilhando a música amadurecida e primordial das esferas. Seus textos são irretocáveis, têm o mesmo nível de beleza, densidade, simbolismo e perfeição. Suas narrativas são pungentes, perfuram como lanças pontiagudas, dilacerando a carne do mundo e dos seres, mas sem deixar de ter os acordes da delicadeza e do lirismo, dando vida e alma às histórias, que procuram o pouso da vitalidade e do amor pulsantes. Denise busca enaltecer o belo até mesmo em cenas carregadas de dramaticidade e dor. Com contos não extensos, o mínimo é subvertido por sua linguagem complexa e insólita que prolonga o tempo, mesmo diante de textos não alongados, que ora tangenciam o eterno, ora abarcam o momento fugaz de um instante. Ela trabalha magnificamente com as várias camadas do tempo, acelerando ou retardando o galope do enredo, cuja metáfora é o cavalo.
Outro fator essencial nos seus contos é a presença da poesia e da música. Ambas requerem o ritmo necessário para a sonoridade dos voos imaginários, em que a poeticidade brinda as histórias com tons surreais, onde o inconsciente e o sonho estão presentes, mas atraindo para si o frescor do real, pois é da existência que o escritor retira a matéria-prima para a invenção de sua escrita ficcional. Um ser mitológico como o centauro só existe porque elementos da realidade são misturados para que a linguagem literária se realize. O filósofo italiano Giambattista Vico disse no seu livro Ciência Nova que na época dos heróis, os homens falavam poeticamente, surgindo depois a época da razão. Os personagens de Denise Emmer comunicam uma fala primordial, simbólica, ambígua e cheia de sugestão. Sugerir é mais importante que explicar, o que dá maior profundidade aos textos dessa escritora excepcional. Como nos primórdios, nos contos orientais, cujos modelos são Panchatantra e Hitopadexa, o mundo de O cavalo cantor e outros contos é do fantástico, desmanchando os limites entre o que é real e o que é imaginário. Podemos ver isso na modernidade com Kafka, Borges, Cortázar e García Márquez, onde encontramos o mágico e o maravilhoso. Os latino-americanos foram os grandes mestres do realismo mágico e no Brasil, temos Murilo Rubião e José J. Veiga.
Denise Emmer rompe como o comum, com a lógica racional. Embora os ventos dela tenham elementos surreais, as suas narrativas não se perdem nos labirintos da desrazão, da loucura e do caos. Há uma intensa conscientização da linguagem que se traduz na fusão entre o irreal e o real. Mas não podemos classificar a obra de Emmer neste ou naquele estilo. Ela tem uma voz autoral toda própria, trazendo uma originalidade que dialoga com o passado, mas apunhalando a tradição mais amordaçada com a adaga de sua inventividade poética, que traz a novidade em meio a um caminho já percorrido, rendendo-lhe tributo, como um vinho velho em garrafas novas. Guimarães Rosa e Clarice Lispector foram grandes escritores do nosso país, que faziam o misto da prosa com a poesia. Eles tinham seus ritmos. Denise percorre os seus com sua vestimenta particular, trazendo traços diferenciados para seu universo simbólico. Há uma luz da realidade que não leva os contos para a dispersão, tangenciando os vários campos do fantástico, do real e do cotidiano. Afinal, Emmer nos traz as formas da vida, pois como disse Goethe numa carta a Schiller: “O poeta é poeta por saturação da experiência”. O galope do cavalo cantor dessa autora magistral traduz a chama da liberdade com relação à tradição e à norma rígida da classificação do gênero conto, pois como nos disse Mário de Andrade: “É conto tudo o que o escritor chamar de conto”. Galopemos agora para a análise dos 11 contos que compõem este livro excepcional, que traz o fogo do verbo forte e vibrante. Todos os textos são ilustrados pelo imenso escritor Álvaro Alves de Faria, que também assina um belíssimo prefácio com uma análise minuciosa sobre essa obra de Denise. Os desenhos representam um retrato distorcido do mundo, com um expressionismo navegante por águas novas, misturando a cor negra ao fundo claro das páginas, ao criar uma síntese entre a palavra soturna e o silêncio branco, como num piano encantatório. Quem assina as orelhas é o grande autor Cyro de Mattos, que mostra com agudeza essa relação dos contos por ora aqui apresentados com o realismo mágico. O cavalo cantor e outros contos, com prefácio do poeta Álvaro Alves de Faria está sendo lançado em Portugal pela Editora Gato Bravo. A edição portuguesa tem o prefácio do poeta António Carlos Cortez.
A dedicatória é feita aos pais, “inventores”, e Denise carrega em seu barco de raras joias o gene da invenção. No conto de abertura do livro, “O primeiro rei”, temos o primeiro amor entre uma jovem de 13 anos e um moço, cujo pai dela representa o controle, o dique, a represa, para que as águas do desejo não transbordem. Encontramos aqui o tema da “viagem”, como em outros contos. Um destino do improvável, mas possível. A viagem ocorre num trem, imagem dos encontros e partidas: “Viajávamos para os longínquos arredores do nunca”. O mundo do sonho é o do deslimite. O pai, neste itinerário, representa o censor, o limite imposto ao reino do delírio amoroso e do sensível: “para mim, o mundo era um resumo do sonho”. Aqui, nesse texto admirável, o olhar, o campo da visão realizam o paradoxo da paisagem, da visibilidade e do silêncio. A plasticidade dos olhos revela o abismo do amor em ebulição. Há o nascimento do amor na idade inocente da adolescência, com grande naturalidade e delicadeza, em contraste com o mundo adulto, que carrega a agressividade e as irrupções de um vulcão.
O moço é “meu primeiro rei”. Há algo de lendário, com a nobreza do amor que lhe é inerente. A escolha do título de rei é algo maior do que o príncipe encantado, quebrando a repetição e recorrendo ao inusitado. Os nomes não são de pessoas, como Mário, Cláudio, Maria, Ana. Ela o chama de “Leste” e ele a chama de “Claridade”, voltando-se, assim, para um dizer originário que corta a mesmice da máscara teatral que encobre nossa personalidade individual. É um amor inaugural na sua essência. E por encanto mágico a lenda é subvertida, não é a moça que dorme, mas o pai, para que o amor germine e floresça. É um “amor imprevisto”, assim como são imprevistas as histórias que são aqui narradas. O beijo é um momento fulgurante como a passagem de um cometa, sendo o ato raro da beleza. Mas: “A manhã se abriu como um envelope vazio”. Os finais de seus contos são inesperados, como em “O primeiro rei”, dando outra trajetória às viagens internas e externas das personagens. O enredo se golpeia com a originalidade de um espanto. Sem os nomes comuns das pessoas, temos metáforas, imagens, acordes de uma música distante. Ao mesmo tempo, temos o sereno, o dramático e o trágico. A dor de Eros nega o sol do êxtase amoroso, se pondo na noite escura da tristeza. Denise realiza um corte abrupto no conto, dando um novo ritmo e marcha à narrativa.
A seguir, temos o conto “Escadaria de pedra”, onde as miudezas, as delicadezas se mesclam com a escuridão e a dureza da pedra. Há uma “peregrinação”. Mãe e filha caminham e o pequeno filho morto se cria num rico paradoxo entre a “risada infantil” e a “lápide fria”. O ritmo oscila entre a chama quente da alegria e a petrificação sombria do caos. A sonoridade da repetição da palavra “escura” com relação à mãe apresenta um cântico fúnebre da memória: “E eu abaixava os olhos em obediência e prosseguia na sombra de sua saia escura. Seus cabelos escuros. Sua blusa escura. Seus sapatos anoitecidos”. E a escolha do ponto final para separar estas frases ao invés das vírgulas dão o tom sepulcral ao enredo. Mas há um fiapo de vida, a companhia da mãe e da filha, entre a perda e o encontro, nos faz percorrer a abertura para o mistério da morte e da esperança através do amor intrínseco entre os seres. Aqui, as imagens do surrealismo ultrapassam o meramente cotidiano e trivial, para trazerem alento a partir do imaginário, uma espécie de catarse e cura, onde o sonho é mais avassalador para a história que um enredo sem poeticidade e imagens inabituais.
Denise Emmer utiliza uma bela metáfora para o amor familiar nesse conto: a fidelidade do cão. Mas temos a imagem do horror, o que aterroriza e petrifica, pois apesar da jornada, há a rigidez e descontinuidade da morte: “Transformou-se em um menino de pedra”. Em meio à morbidez fria, há a sutileza das palavras do amor maternal: “Seja feliz, minha filha”. E a mineralidade do inanimado se desfaz com a ternura da linguagem em movimento. O irmão pequeno morto é o espaço da habitação poética. É possível falar da dor com a beleza eterna das palavras. É antinatural a perda precoce do filho. E a metáfora das maçãs que se acabam é o símbolo do viço que se perdeu, da frutificação que se destruiu no infinito espaço da morbidez. A ausência é uma forma de vazio que deseja a presença da voz e do corpo, do som e do movimento, do gesto da vida: “Restava-lhe encontrar a velada beleza da morte”. Os contos breves são tão intensos que produzem um prolongamento na leitura e na imaginação do leitor.
No conto “Sem começo, sem meio, sem fim”, podemos perceber, no início da narrativa, a ideia de não continuidade, extensão e mudança linear, mas o que é descontínuo e caótico. Teríamos assim, supostamente, uma ordem cósmica e estruturante: “O dia não começa no dia. Se já é dia, com sol alto e galos vermelhos, também poderá ser noite”. Há um corpo do dia habitando o corpo da noite. Isso dá a ideia de circularidade e não da linha reta. É o galope do cavalo que não segue uma sequência temporal rígida, mas com seus movimentos, paradas, recuos e desvios, pulando os relógios do tempo cronológico. De forma impactante, somos levados ao interior da casa de um velho chamado “Ninguém”, onde as janelas ficam embaixo, perto dos pés dele, subvertendo a ordenação do lar tradicional. Na velhice, Ninguém lida com a escassez e não com o excesso, com o que falta e não sobra, com o esquecimento, a falta de memória na sua doença sem solução. A vida de Ninguém é triste e sem sentido, pois como Emmer diz “não há formigas em fileiras transitando pelo assoalho para que ele possa contá-las e, assim, contabilizar o tempo…”
Há o contraste entre a estaticidade e o movimento, o vazio e o cheio, o ócio e o trabalho, este representado pelas formigas. Aqui há uma eternidade que não é o tempo da essência da matéria do mundo, com suas transformações. A casa é um espaço vazio. Para Ninguém, tudo se assemelha na sua mesmice e vida fantasmagórica, sem corpo e memória. Ele está parado como estátua fria esperando a morte que não leva à progressão e ao movimento da vida e do tempo. Seria necessário para ele a regeneração, o florescer do novo no antigo e acabado. A abertura para a existência em sua plenitude de saúde e beleza. Um mundo de cinzas em que a Fênix não renasce. Aqui, não se fala de renascimento, mas de pausa, de ausência e esquecimento. Sem a “gravidade” da Terra, Ninguém vive fora do tempo do mundo e do transitório. Há uma transcendência que o aproxima da morte. Mas, o cigarro o atém à terra, ao vício do mundo, para que haja uma ponte, uma fresta entre seu mundo nulificante e a coisificação da vida. O esvaziamento de tudo é a face gélida da morte, a perda de tudo, dos objetos, dos amigos, dos familiares e de si mesmo. E, incrivelmente, há jogos de linguagem para driblar o vazio da comunicação: “Ninguém não ama ninguém”. E ainda: “E ninguém ama Ninguém”. Brincando assim com o maiúsculo e o minúsculo da vida. Um desaparecimento de tudo é uma implosão e uma volta ao estado originário do nada e do fim. Com a doença, ele não se lembra, repetindo os ritmos e gestos da vida.
Avançando em mais um conto, “Menino e suas árvores” faz um jogo textual entre incomunicabilidade e comunicabilidade. Neste texto, temos uma família em meio à pobreza e escassez do local. O filho, da cor do ébano, tem uma deficiência que o torna frágil física e psicologicamente. Na narração inicial do nascimento dele, Emmer utiliza estrategicamente a junção entre o cósmico e o terreno, o macro e o micro, o múltiplo e o mínimo. Nos seus textos, temos a influência de seus conhecimentos na sua formação em Física e Música. O bebê luta pela vida, pelo respiro da existência exterior e a morte tangencia a maternidade. O telúrico e o espacial se conjugam numa alquimia poética perfeita. Ela revela a grandiosidade materna em palavras belas e metafóricas. O menino vai crescendo com dificuldade, mostrando toda sua inocência e inexperiência. Há todo um aprendizado corporal. Numa descrição gradativa com a palavra de ausência e de vazio, tudo o que falta para completar o todo, o par e o duplo, Denise Emmer usa o termo “sem”. Mas, no final, nos surpreende com uma imagem na última frase dessa sequência de incompletudes, a expressão “com”.
Seres e animais são comparados nos contos, voltando-nos para os contos orientais que falavam do maravilhoso, assim como, posteriormente, em Metamorfoses, de Ovídio. O instinto materno se compara à leoa com sua cria. O instinto vai além do ato racional. O conto se reporta às adversidades do real, mesmo que a imaginação da mãe com relação ao futuro do filho fosse outra. O menino não andava direito, não olhava quando a mãe o chamava e não pronunciava a tão sonhada palavra: “Mãe”. Até os brinquedos daquele lugar humilde representam a falta, símbolos para a incompletude de Menino, como é nomeado: “Seu rosto nada mexia, assim como se fosse de um boneco de cera”. Contrariando os brinquedos que só tem a parte e não o todo, a mãe do menino compra um “carrinho rústico de madeira”. Mesmo assim, ele fica fechado para o mundo, vivendo no seu dentro. Não brincava com outras crianças, isolado em sua alma. Mas ele gostava de andar em volta das árvores secas repetidamente. E a metáfora da árvore mesmo que seca representa a esperança de vida e regeneração, uma reviravolta que será surpreendente no final. Os seus contos são verdadeiras decifrações de enigmas. Há um embate simbólico entre a apatia e a vitalidade. Os seus contos mostram ciclos de transformação, de metamorfose. Deve haver uma situação limite para a mudança, da morte surge a vida, do perigo, há o renascimento. Como escreveu Guimarães Rosa: “Viver é muito perigoso”.
Em “Metamorfose”, nome da personagem, “era uma mulher feita de atmosfera”. Ela vai vestindo uma roupagem imagética feita de sonhos e movimento. O leitmotiv do conto é a mutação da mulher em outros elementos. Ela vai utilizando vestimentas diferentes, como uma árvore, entre outros. Com sua feminilidade camaleônica, encontramos as faces múltiplas da personalidade volúvel e fugaz. Ela não se detém numa única forma, está em constante transformação como nos mitos antigos. No mito de Narciso, ele se transforma em flor e a ninfa que o ama e não é correspondida por ele, em pedra. A ninfa Eco. O narcisismo de Metamorfose a faz descer e subir, com os elementos simbólicos da queda e da ascensão. Ela quer o resgate do corpo, da corporalidade.
Por não buscar a essência de seu próprio ser e do outro, casa-se com um “vulto”. Aqui, podemos perceber a ambiguidade do texto, entre o corpóreo e o incorpóreo, a natureza e o descarnamento. Ela dá à luz à “uma criança sem rosto”. Será que ela encontrou seu amor singular e verdadeiro, refletindo seu interior na mágica da harmonia cósmica? Ela até se transforma em “corredeiras desnorteadas”. Será que no final ela encontrará sua verdadeira “metamorfose”, seu rosto e essência perdidos? No final temos a contradição entre natureza e artifício. Temos metamorfoses eróticas e mórbidas, Eros e Tânatos em seus aspectos transfigurantes, que não querem a permanência, pois como dizia o pré-socrático Heráclito, tudo é impermanente. No desfecho, aquilo que é mais enigmático, diferente, que nos confronta, é afastado. Isso acontece com a arte que não aceita com bons olhos os estilos inovadores, que subvertem a tradição engessada. A maioria da sociedade massificada só quer aplaudir o “óbvio ululante”, o que é presa fácil para os sentidos, sem enigmar.
No conto “Três minutos”, a temporalidade é marcada pontualmente no seu aspecto cronológico: “O relógio marca 16h57”. E Denise Emmer utiliza outras palavras para os minutos, ampliando o semantismo da expressão, com a pluralidade da linguagem: “O que acontecerá daqui a 180 segundos?” A exatidão do encontro se queima pelo fogo ardente do tempo psicológico. E esse tempo tão curto se torna “vagaroso”. Há aqui um outro tempo, o tempo da linguagem, da escritura, oscilando a vagareza e a rapidez das preliminares do momento preciso. A eternidade é algo dentro do tempo cronológico que o subverte, fazendo os ponteiros do relógio clamarem pela chama do desejo entre a mulher e o seu amante. E numa bela comparação, temos o encontro também entre o eu e o mundo, o interior e o exterior. Vemos os tempos em seus diversos signos polissêmicos. Há uma inquietação nessa mulher que tem a segurança de seu lar, com seu marido e filho, mas que parte para uma aventura que inverte os polos do mundo. No conto, encontramos outra metáfora para os três minutos, “um terceiro olho”.
Esse amante é execrável, mostrando toda sua crueldade e vampirismo, subjugando sua amada. O lado sombrio do amor se revela pelo seu oposto, o do ódio. O outro lado de Eros que ela compara a um “deus nefário”. Há promessas, paraísos, mas o inferno é bem aqui. Agora ela fala em segundos que não andam. É como se nada acontecesse. O tempo se estende numa rua larga e escura do abismo dessa paixão que a faz enlouquecer e titubear entre o familiar e o estrangeiro. Ela também se opõe entre a máscara e a integridade: “Eu tenho muitos caminhos, mas uma só percepção”. Aqui está a metáfora para seus escritos que percorrem veredas múltiplas, mas que apresentam uma marca particular da escritora, inventando mundos nos seus dramas teatrais, unindo o narrativo, o lírico e o dramático. Há dois caminhos que se bifurcam: o do sossego, da placidez e da estabilidade e o outro; da inquietude, do tremor e da quebra dos seus alicerces. O real seria a tessitura da paz e da retidão e o irreal a miragem a aquecer desertos em busca de um oásis? Qual será a escolha? Cabe ao leitor se deleitar com sua arquitetura textual no clímax do conto. O excesso do erótico, como diria o ensaísta Bataille no seu deslimite e violência, ou um equilíbrio traspassado pela suavidade da casa com seus cheiros e sabores amenos? O desequilíbrio, o caos amoroso ou o restabelecimento do cosmos familiar? Ela diz: “O cotidiano é uma maçã púrpura no centro de um prato simétrico”. Há a crueldade de um amor mortal. Eros se metamorfoseia em Tânatos? Ou suas asas buscam se amenizar no terreno da harmonia? O final com relação ao tempo é surpreendente. Deixo aos leitores descobrirem pelas entrelinhas do tecido do enredo a trama dos três minutos.
Em mais um conto primoroso, “Cibernética e Azul”, temos a relação inicial entre a dona e seu gato. Esse animal indica proteção para sua dona, um guia para que não haja desvios no seu caminhar amoroso. Ele representa a mansidão, por isso se chama Azul, felino do ambiente celeste, elevando a mulher para a serenidade da casa, do Paraíso. Mas ela adentra “uma sala repleta de pessoas sem rosto”. Há, aqui, um processo de desidentificação e anonimato. A perda de suas almas. E esses seres sem rosto querem exigir um nome que ela não tinha. Ela não era nomeada, vivia na plenitude da essência do ser e não da máscara, que personifica sua incorporação ao status quo terreno. Querem que ela seja expulsa do Paraíso e adquira a massificação da sociedade num planeta artificial.
Ela mesma se nomeia “Cibernética”, a tentação do mundo ilusório e virtual. A solidão em meio à coletividade. O ninho dela é seu fiel gato? Ou se identificar com corpos impalpáveis? Nas fotos da virtualidade predatória, ela encontra o motivo edênico e a sua expulsão pelo encantamento de uma serpente. São formas, simulacros e não seres com a vitalidade das suas singularidades. Nesse conto tecnológico, encontramos a distopia dos tempos eletrônicos, com seus aparelhos que nos seduzem pelas telas hipnóticas dos computadores e celulares. A naturalidade inicial cede ao artificial. Denise Emmer finaliza o conto nos golpeando com um bote mortal e os leitores saem impactados diante da surpresa. É necessário resgatar o divino apelo do azul dos afetos mais raros e verdadeiros, sem o campo minado da ilusão do mundo contemporâneo, de uma tecnologia traiçoeira que pode nos afastar do humano e nos aproximar do inumano.
Mais uma vez, Emmer escreve sobre a escassez no belíssimo conto “Ensaio geral”, onde os músicos de uma orquestra são mal pagos, em que eles têm de lidar com um maestro tirano. Temos os bastidores da área artística, o que acontece antes através da desarmonia, o pré-palco com suas brigas e afrontas. Mas o conto não começa pelo ensaio e sim pelo espetáculo, que recebe aplausos e bis, subvertendo o antes e o depois, os tempos são invertidos. E, nós leitores, somos os espectadores de um ensaio que indica o caos das relações humanas, quando a arte como a música transcende isso. A plateia do lado de lá não vê. É o que se mantém oculto, mas a escritora nos revela o que acontece nessa preliminar, 60 minutos antes do harmônico hálito dos sons.
A figura do maestro era horripilante, com suas roupas vampirescas. Ele seria a imagem do opressor, da dominação, do poder, considerando seus artistas como “bárbaros”. Não foi sempre assim na dominação dos povos considerados superiores com relação aos dominados, subjugados, por serem vistos como nadas? Esse conto tem uma forte tensão dramática, com um conflito concentrado na sujeição do outro pelo medo. O ambiente é sombrio em sua ruína mortal: “O traje preto os igualava a uma noite sem janelas”. Mas os músicos são fiéis a sua plateia e os acordes são plenos e belos. Se antes houve um desequilíbrio e, no meio, o equilíbrio momentâneo do espetáculo, cabe aos ritmos contrastantes das palavras e dos instrumentos cederem espaço para a pausa, pois o som precisa de seu intervalo, de seu silêncio, de seu espanto. Há uma canção de Simon & Garfunkel que traduz este paradoxo: The sound of silence. O som e o silêncio são os dois lados da geometria sagrada da música. Assim, como a palavra e o vazio, na literatura.
Em “Três netos de Alice”, temos o embate entre a audição e a visão. Os netos ouvem, mas não veem. A escuta é enaltecida pelo seu simbolismo de comunicação poética para que o aprendizado ocorra de forma lúdica. O ensino da matemática da avó para seus netos não se dava pela abstração dos números, mas pela concretude da linguagem imagética, trazendo uma visão simbólica para eles: “Três pernas vezes sete palmos é igual a 21 cavalos”. A personagem fala poeticamente e ressignifica o mundo para as crianças cegas: “Dois meninos mais uma menina são iguais a três crianças sonoras”. A ausência dos pais, que vão viver outras histórias longínquas, é suprida pelo amor da figura anciã. Aqui, a velhice, diferente do conto analisado nesse ensaio, representa a sabedoria e o viço da memória musical.
A avó os nutre, os faz crescer e aprender. A família é a primeira escola. Nesse texto de grande beleza, há a contemplação da natureza. Os seres e a natureza se fundem. O som os aproxima. É o ouvido interno da leitura do mundo. A curiosidade infantil, o mundo da criança é original, representando o novo. A relação entre a avó e seus netos produz uma harmonia rítmica com os cânticos da natura. E, mais uma vez aqui, o final muda um ritmo nos esconderijos da libertação.
Partindo para o conto “Linguagem mineral”, percebemos que o começo da história sugere os espantos e mistérios a serem desvendados. Os inícios de seus contos já trazem essa marca alada a nos conduzir a rumos não fiáveis pela facilidade. Ela dá vida ao reino mineral, assim como aos outros, personificando os elementos da natureza, que ganham animismo e movimento: “As pedras não falavam, mas eu as ouvia”. O corpo da linguagem no natural é desvelado pelo enigma interior da subjetividade, que casa o interno com o externo, numa comunhão do sacrário do ser. Isso nos faz lembrar de um conto de Lygia Fagundes Telles, que também utilizava o fantástico em muitos de seus textos. No livro A noite escura e mais eu, temos o grandioso conto “Uma branca sombra pálida”, conflitante e trágico, em que uma mulher conversa com uma borboleta. Denise Emmer diz: “Sempre ouvi as frases das rochas quando falavam entre dentes”. Ela cria analogias entre o humano e a natureza, revelando que algo de nossa cultura artística, a música, está presente na beleza natural.
Emmer produz associações de elementos diferentes através do poder das imagens mais extraordinárias, fugindo do ordinário e habitual. Mas o cotidiano comparece com seus sopros de vida pelas flautas do seu lirismo arrebatador. Subindo pedras altas com seu guia, ela vai se comungando com o que está a sua volta, numa epifania do encontro entre o ser e o ambiente primordial. Mas há uma tensão, um conflito nessa harmonia primeva a partir de seu guia na escalada dos pontos altos. É necessária uma pausa, um descanso, como na música serena para a contemplação e nutrição do corpo com suas necessidades. Mas a tirania mais uma vez comparece entre aquele que conduz e aquela que é conduzida, numa relação de opressão. Ele quer a potência, ultrapassar a medida do humano, como na tragédia grega, o metron, querendo estar acima de tudo: “Sejamos os melhores. Mais fortes que as montanhas e acima dos deuses e dos frágeis”. Mas somos feitos de carne, sangue e ossos, com nossa fragilidade cambiante, ainda que resida em nosso interior uma alma reticente e aguda como as pedras em sua existência milenar. Nos contos de Emmer, nos deparamos com o inonimado, com o inefável. Mas o guia é um anti-guia, querendo retirar dela todos os mapas e direções, para que ela se perca e se ache. Essa é a metáfora do caminho espinhoso da experiência de cada um. O final é de uma crueldade atroz, mas que nos leva à aprendizagem de uma vida íngreme como as pedras pontiagudas do caminho, talvez aquelas que sejam apenas obstáculos e não falem, como a pedra drummondiana, que nos faz questionar em nossa solidão os reveses da experiência vivida.
“O cavalo cantor” fecha o livro meteoricamente. O conto alia a vida pulsante ao diálogo com a morte. O cavalo, símbolo ambíguo e dúbio, traz em sua essência o dom da arte. Cinema, nome estrategicamente utilizado para nomeá-lo, de forma poética e sugestiva, revela o movimento, o valor da figura e da imagem, mas, também, dos sons e acordes do corpo e da música. Associando as artes, galopando as diferenças, o “cavalo cantor” traduz o belo em sua dinâmica de claridade e escuridão, luz que acolhe e sombra que faz tremer, como no ato erótico, na simbiose entre os corpos, que atingem os abismos insondáveis dos mistérios. Os contos de Emmer são magníficos, de uma poeticidade ondulatória, que carrega seus leitores para os movimentos raros da vida em expansão. A música, sua face que se inaugura como presente para os seres, percorre seus contos, através do ritmo e da sonoridade, características mestras da poesia, mas que a escritora densifica na prosa, unindo os labirintos aparentemente invertidos dos gêneros. As analogias são ricas e magistrais, aliando técnica e vocação literárias.
O cavalo, no início do conto, é chamado por vários nomes, menos o da Morte: “Ele poderia ser muitos. Astrolábio, Pé de Pedra, Poeira, Piano, Ribamar, Meia-Noite, Raio…” Denise Emmer mostra todas as preliminares para o cavalgar, a preparação para a viagem, o meio e o fim que a conduzem à liberdade e ao infinito. Mais uma vez aqui, a autora funde o galope telúrico às imagens aéreas, do céu, através das formas das nuvens. Com imagens delirantes, ela compara o etéreo com as metáforas terrestres e concretas. O amor não é um delírio? Mas, aqui, nós percebemos um momento de descanso, diferente do guia montanhista. O cavalo dá uma pausa para comer capim. Há recuos, retardamentos, movimentos, desvios, ações rompantes e aceleradas nesse galopar que servem como figurações da estruturação de seus contos. A pausa do animal é uma cortante ironia para a ação do Cinema, que revela o movimento. No conto derradeiro, temos a dinâmica do claro-escuro, da vida e da morte, do silêncio e do movimento, da pulsão de vida e de morte. O indivíduo tem várias almas dentro das águas do ser. O cavalo adquire a celeridade e intrepidez necessárias ao ato amoroso que ocasiona os momentos de uma “pequena morte” erosiva. Há uma sinestesia das artes, numa dança circular de sensações e singularidades que se misturam. A distorção do real se apresenta pela celeridade do movimento, fazendo as coisas de fora adquirirem uma outra imagem, mais expressiva. E Emmer belamente nos mostra a tensão entre o “desmaio” e a “morte” com suas interrogações, que não apresentam uma resposta unívoca. Existem vários galopes e a viagem sempre é nova e imprevisível.
Portanto, os seus contos revelam as várias camadas do literário, com seus ritmos e tempos diferentes. Os textos apresentam apuro e complexidade sígnica. Denise Emmer não conduz o leitor para o óbvio, mas para o galope enigmático, que nos surpreende e seduz com seus cantos fortes e intensos como os mares da introspecção e extrospecção. Os contos são doloridos, trazendo um fio de vida e enaltecendo o belo em todos os matizes da vida, no sofrimento ou na alegria. Contêm elementos surreais e mágicos, mas sem deixar o chão da terra batida com seus cotidianos lunares. As metáforas e as imagens originais não atrapalham o enredo, pois Denise Emmer é uma exímia contadora de histórias, que não se prendem ao simplório, mas a uma singularidade cheia de elementos significativos e que levam ao deciframento dos signos não previstos pela lógica estruturalista. A escritora carioca estreia de forma magnífica nos contos, trazendo uma linguagem ímpar e incomum, com grande riqueza imaginária, aliando o sonho à realidade, o fantástico ao cotidiano. Qualidade e originalidade são as suas marcas maiores que fecundarão outros rios de textos com grande teor poético.
*Escritora e Doutora em Literatura Comparada (UERJ)
Norival Pacheco da Silva, nascido em São Paulo, em 1940, iniciou-se na profissão. Com 15 anos começou a cortar cabelo e fazer barba oficialmente, pois só tinha três anos de barbearia, onde aos poucos foi introduzindo melhorias em relação à higiene, estética, praticidade e impondo novas ideias, inclusive a mais simples de lavar os cabelos antes do corte, que não era um habito de muitos, técnicas novas de corte, presença de mulheres no salão, também outra situação que não ocorria pelo comportamento dos homens.
Com tudo isso, veio à primeira conquista, ou seja, o campeonato da Américas, depois aparições na tv, jornais e revistas, mudando o conceito do povo e notando que as pessoas também queriam um novo sistema de salão.
E aí comecei a sentir uma vontade muito grande de falar pra todo mundo de que eu tinha conseguido mudar o nível do salão de barbeiro, porém não via como fazer isso. Daí então escreveu para que um dia fosse conhecida toda essa mudança.
Nunca mais parei de escrever sobre a profissão, ate que, juntando tudo, deu nesta história, nessa trajetória profissional cheia de assuntos, cheia de técnicas, de fotos, de conhecimentos adquiridos ao longo desses 40 anos.